Movimento
indígena ou movimentos indígenas?
Extraido:
Série Vias dos Saberes no 1
Um
dos fatores que contribuíram para o processo de dominação e
de
extermínio dos povos indígenas do Brasil foi a habilidade com que
os
colonizadores portugueses usaram a seu favor os desentendimentos
internos
entre os diferentes grupos étnicos, fosse provocando brigas
entre
eles ou usando-os para comporem seus exércitos para atacarem
grupos
rivais.
A
partir dessa trágica experiência, os povos indígenas resolveram
superar
as rivalidades, e se uniram para lutar em conjunto por seus
direitos.
Para consolidar essa nova estratégia, diversos povos indígenas,
a
partir da década de 1970, começaram a criar suas organizações
representativas
para fazerem frente às articulações com outros povos e
com
a sociedade nacional e a internacional. A conjunção e a articulação
entre
tais organizações constituem hoje o chamado movimento indígena
organizado.
O capítulo tratará do aspecto histórico dos principais
mecanismos
de dominação impostos aos povos indígenas pelos colonizadores,
bem
como dos primeiros sinais de emergência do movimento
indígena
organizado, suas principais conquistas e desafios e as possíveis
perspectivas
que apontam. Abordaremos ainda as diferentes formas e
dinâmicas
de organização dos trabalhos e das lutas políticas dos povos
indígenas
no Brasil na atualidade. Não se trata de um manual, mas de
um
subsídio para discussão, reflexão, estudos ou pesquisas que tenham
por
objetivo aprofundar a compreensão acerca das formas de organização
social
dos povos indígenas brasileiros contemporâneos.
Os
povos indígenas sempre resistiram a todo o processo de dominação,
massacre
e colonização européia por meio de diferentes estratégias,
desde
a criação de federações e confederações de diversos povos para
combaterem
os invasores, até suicídios coletivos. A estratégia atual mais
importante
está centrada no fortalecimento e na consolidação do movimento
indígena
organizado. O ponto de partida é conhecer um pouco
o
processo histórico vivido pelos povos indígenas nos últimos anos e as
diferentes
estratégias de resistência e luta adotadas por todo esse tempo
para
se chegar ao atual cenário em curso, e também as possibilidades
e as
perspectivas que apontam. São informações que buscam atender
às
múltiplas dimensões políticas, técnicas e administrativas que assumiram
as
organizações indígenas no Brasil contemporâneo, baseadas
em
experiências de luta no campo do movimento indígena brasileiro,
particularmente,
no movimento indígena amazônico.
Nosso
objetivo é aprofundar o desenvolvimento de alguns aspectos
conceituais,
metodológicos e operacionais incorporados pelas diferentes
formas,
naturezas, níveis e propósitos adotados pelas organizações
sociais
indígenas na atualidade. Referimo-nos ao movimento
indígena
organizado e aos esforços e às estratégias locais, regionais e
nacionais
de luta articulada entre comunidades, povos e organizações
indígenas
em torno de uma agenda e de interesses de luta comuns a
todos.
Isto para diferenciar das organizações tradicionais de cada
comunidade
ou povo, que também são formas organizadas de vida,
mas
geralmente limitadas aos níveis e aos interesses locais, sem uma
abrangência
mais ampla.
O que é movimento indígena?
Movimento
indígena, segundo uma definição mais comum entre as
lideranças
indígenas, é o conjunto de estratégias e ações que as comunidades
e as
organizações indígenas desenvolvem em defesa de seus
direitos
e interesses coletivos. Movimento indígena não é o mesmo
que
organização indígena, embora esta última seja parte importante
dele.
Um indígena não precisa pertencer formalmente a uma organização
ou
aldeia indígena para estar incluído no movimento indígena,
basta
que ele comungue e participe politicamente de ações, aspirações
e
projetos definidos como agenda de interesse comum das pessoas,
das
comunidades e das organizações que participam e sustentam a
existência
do movimento indígena, neste sentido, o movimento indígena
brasileiro,
e não o seu representante ou o seu dirigente. Existem
pessoas,
lideranças, comunidades, povos e organizações indígenas que
desenvolvem
ações conjuntas e articuladas em torno de uma agenda
de
trabalho e de luta mais ou menos comum em defesa de interesses
coletivos
também comuns.
O
líder indígena Daniel Mundurucu costuma dizer que no lugar de
movimento
indígena dever-se-ia dizer índios em movimento. Ele tem
certa
razão, pois não existe no Brasil um movimento indígena. Existem
muitos
movimentos indígenas, uma vez que cada aldeia, cada povo ou
cada
território indígena estabelece e desenvolve o seu movimento.
Mas
as lideranças indígenas brasileiras, de forma sábia, gostam de
afirmar
que existe sim um movimento indígena, aquele que busca articular
todas
as diferentes ações e estratégias dos povos indígenas,
visando
a uma luta articulada nacional ou regional que envolve os
direitos
e os interesses comuns diante de outros segmentos e interesses
nacionais
e regionais.
Essa
visão estratégica de articulação nacional não anula nem reduz as
particularidades
e a diversidade de realidades socioculturais dos povos
e
dos territórios indígenas; ao contrário, valoriza, visibiliza e fortalece a
pluralidade
étnica, na medida em que articula, de forma descentralizada,
transparente,
participativa e representativa os diferentes povos.
No
Brasil, existe de fato, desde a década de 1970, o que podemos
chamar
de movimento indígena brasileiro, ou seja, um esforço conjunto
e
articulado de lideranças, povos e organizações indígenas objetivando
uma
agenda comum de luta, como é a agenda pela terra,
pela
saúde, pela educação e por outros direitos. Foi esse movimento
indígena
articulado, apoiado por seus aliados, que conseguiu convencer
a
sociedade brasileira e o Congresso Nacional Constituinte a aprovar,
em
1988, os avançados direitos indígenas na atual Constituição
Federal.
Foi esse mesmo movimento indígena que lutou para que os
direitos
à terra fossem respeitados e garantidos, tendo logrado importantes
avanços
nos processos de demarcação e regularização das
terras
indígenas. Foi também esse movimento que lutou – e continua
lutando
– para que a política educacional oferecida aos povos indígenas
fosse
radicalmente mudada quanto aos seus princípios filosóficos,
pedagógicos,
políticos e metodológicos, resultando na chamada educação
escolar
indígena diferenciada, que permite a cada povo indígena definir e exercitar, no
âmbito de sua escola, os processos próprios
de
ensino-aprendizagem e produção e reprodução dos conhecimentos
tradicionais
e científicos de interesse coletivo do povo. A implantação
dos
Distritos Sanitários Especiais Indígenas, ainda em construção e
aperfeiçoamento,
é outra conquista relevante da luta articulada do
movimento
indígena brasileiro.
Em
nível regional, na Amazônia, o Projeto Demonstrativo dos Povos
Indígenas
(PDPI), que faz parte do Ministério do Meio Ambiente,
e o
Projeto Integrado de Proteção das Terras Indígenas na Amazônia
Legal
(PPTAL), pertencente à Fundação Nacional do Índio (FUNAI),
são
alguns exemplos particulares da existência e da capacidade de
mobilização
e pressão do movimento indígena amazônico. Assim, poderíamos
enumerar
vários exemplos de conquistas do movimento indígena.
Isto
significa dizer que muitas dessas conquistas políticas não
teriam
sido possíveis sem o movimento indígena articulado, mesmo
com
suas limitações e fragilidades, uma vez que é uma aprendizagem
muito
nova para os índios por se tratar de uma modalidade complexa
de
trabalho e luta dos brancos, até então desconhecida pelos povos
indígenas.
O
modelo de organização indígena formal – um modelo branco – foi
sendo
apropriado pelos povos indígenas ao longo do tempo, da mesma
forma
que eles foram se apoderando de outros instrumentos e novas
tecnologias
dos brancos para defenderem seus direitos, fortalecerem
seus
modos próprios de vida e melhorarem suas condições de vida, o
que
é desejo de qualquer sociedade humana. Isto não significa tornar-se
branco
ou deixar de ser índio. Ao contrário, quer dizer capacidade de
resistência,
de sobrevivência e de apropriação de conhecimentos, tecnologias
e
valores de outras culturas, com o fim de enriquecer, fortalecer
e
garantir a continuidade de suas identidades, de seus valores e de suas
tradições
culturais.
A
idéia de movimento indígena nacional articulado é importante
para
superar a visão antiga dos colonizadores de que a única coisa
que
os índios sabem fazer é brigar e guerrear entre si quando, na verdade,
usaram
essas rivalidades intertribais para dominá-los, para isso, jogando um povo
contra o outro. Ainda hoje, muitos brancos, principalmente
do
governo, preferem dar mais importância à idéia de que
não
há e não pode haver movimento indígena articulado e representativo
devido
à diversidade de povos e realidades, pois isso fortalece
os
propósitos de dominação, manipulação e cooptação dos índios em
favor
de seus interesses políticos e econômicos. Os dirigentes políticos
e os
gestores de políticas públicas utilizam muito esta idéia para
justificar
suas omissões e incapacidades de formular e de implementar
políticas
públicas coerentes, com o argumento de que os índios não se
entendem,
e isso impede a execução das ações. Um exemplo disto é o
projeto
de lei do Estatuto das Sociedades Indígenas, que há mais de
10
anos permanece sem aprovação no Congresso Nacional. A principal
justificativa
por parte dos dirigentes políticos é a falta de consenso
entre
os índios sobre as várias questões e os diferentes aspectos do
projeto
de lei.
É em
nome dessa visão propositadamente distorcida da diversidade
indígena
que a FUNAI não reconhece as organizações indígenas como
interlocutoras
ou agentes políticos das comunidades indígenas, argumentando
que
os povos indígenas, na sua totalidade, não aceitariam
ser
representados por alguma organização indígena. Na verdade, essa
representação
pan-indígena não interessa a muitos setores políticos e
econômicos
do país e, por isso, acabam dividindo os povos e as comunidades
indígenas para assim
subjugá-los e dominá-los.