quarta-feira, 24 de abril de 2013



Extraído  Série Vias dos Saberes no 1.

Movimento indígena, segundo uma definição mais comum entre as
lideranças indígenas, é o conjunto de estratégias e ações que as comunidades
e as organizações indígenas desenvolvem em defesa de seus
direitos e interesses coletivos. Movimento indígena não é o mesmo
que organização indígena, embora esta última seja parte importante
dele. Um indígena não precisa pertencer formalmente a uma organização
ou aldeia indígena para estar incluído no movimento indígena,
basta que ele comungue e participe politicamente de ações, aspirações
e projetos definidos como agenda de interesse comum das pessoas,
das comunidades e das organizações que participam e sustentam a
existência do movimento indígena, neste sentido, o movimento indígena
brasileiro, e não o seu representante ou o seu dirigente. Existem
pessoas, lideranças, comunidades, povos e organizações indígenas que
desenvolvem ações conjuntas e articuladas em torno de uma agenda
de trabalho e de luta mais ou menos comum em defesa de interesses
coletivos também comuns.
O líder indígena Daniel Mundurucu costuma dizer que no lugar de
movimento indígena dever-se-ia dizer índios em movimento. Ele tem
certa razão, pois não existe no Brasil um movimento indígena. Existem
muitos movimentos indígenas, uma vez que cada aldeia, cada povo ou
cada território indígena estabelece e desenvolve o seu movimento.
Mas as lideranças indígenas brasileiras, de forma sábia, gostam de
afirmar que existe sim um movimento indígena, aquele que busca articular
todas as diferentes ações e estratégias dos povos indígenas,
visando a uma luta articulada nacional ou regional que envolve os
direitos e os interesses comuns diante de outros segmentos e interesses
nacionais e regionais.
Essa visão estratégica de articulação nacional não anula nem reduz as
particularidades e a diversidade de realidades socioculturais dos povos
e dos territórios indígenas; ao contrário, valoriza, visibiliza e fortalece a
pluralidade étnica, na medida em que articula, de forma descentralizada,
transparente, participativa e representativa os diferentes povos.
No Brasil, existe de fato, desde a década de 1970, o que podemos
chamar de movimento indígena brasileiro, ou seja, um esforço conjunto
e articulado de lideranças, povos e organizações indígenas objetivando
uma agenda comum de luta, como é a agenda pela terra,
pela saúde, pela educação e por outros direitos. Foi esse movimento
indígena articulado, apoiado por seus aliados, que conseguiu convencer
a sociedade brasileira e o Congresso Nacional Constituinte a aprovar,
em 1988, os avançados direitos indígenas na atual Constituição
Federal. Foi esse mesmo movimento indígena que lutou para que os
direitos à terra fossem respeitados e garantidos, tendo logrado importantes
avanços nos processos de demarcação e regularização das
terras indígenas. Foi também esse movimento que lutou – e continua
lutando – para que a política educacional oferecida aos povos indígenas
fosse radicalmente mudada quanto aos seus princípios filosóficos,
pedagógicos, políticos e metodológicos, resultando na chamada educação
escolar indígena diferenciada, que permite a cada povo indígena
definir e exercitar, no âmbito de sua escola, os processos próprios
de ensino-aprendizagem e produção e reprodução dos conhecimentos
tradicionais e científicos de interesse coletivo do povo. A implantação
dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas, ainda em construção e
aperfeiçoamento, é outra conquista relevante da luta articulada do
movimento indígena brasileiro.
Em nível regional, na Amazônia, o Projeto Demonstrativo dos Povos
Indígenas (PDPI), que faz parte do Ministério do Meio Ambiente,
e o Projeto Integrado de Proteção das Terras Indígenas na Amazônia
Legal (PPTAL), pertencente à Fundação Nacional do Índio (FUNAI),
são alguns exemplos particulares da existência e da capacidade de
mobilização e pressão do movimento indígena amazônico. Assim, poderíamos
enumerar vários exemplos de conquistas do movimento indígena.
Isto significa dizer que muitas dessas conquistas políticas não
teriam sido possíveis sem o movimento indígena articulado, mesmo
com suas limitações e fragilidades, uma vez que é uma aprendizagem
muito nova para os índios por se tratar de uma modalidade complexa
de trabalho e luta dos brancos, até então desconhecida pelos povos
indígenas.
O modelo de organização indígena formal – um modelo branco – foi
sendo apropriado pelos povos indígenas ao longo do tempo, da mesma
forma que eles foram se apoderando de outros instrumentos e novas
tecnologias dos brancos para defenderem seus direitos, fortalecerem
seus modos próprios de vida e melhorarem suas condições de vida, o
que é desejo de qualquer sociedade humana. Isto não significa tornar-se
branco ou deixar de ser índio. Ao contrário, quer dizer capacidade de
resistência, de sobrevivência e de apropriação de conhecimentos, tecnologias
e valores de outras culturas, com o fim de enriquecer, fortalecer
e garantir a continuidade de suas identidades, de seus valores e de suas
tradições culturais.
A idéia de movimento indígena nacional articulado é importante
para superar a visão antiga dos colonizadores de que a única coisa
que os índios sabem fazer é brigar e guerrear entre si quando, na verdade,
usaram essas rivalidades intertribais para dominá-los, para isso,
jogando um povo contra o outro. Ainda hoje, muitos brancos, principalmente
do governo, preferem dar mais importância à idéia de que
não há e não pode haver movimento indígena articulado e representativo
devido à diversidade de povos e realidades, pois isso fortalece
os propósitos de dominação, manipulação e cooptação dos índios em
favor de seus interesses políticos e econômicos. Os dirigentes políticos
e os gestores de políticas públicas utilizam muito esta idéia para
justificar suas omissões e incapacidades de formular e de implementar
políticas públicas coerentes, com o argumento de que os índios não se
entendem, e isso impede a execução das ações. Um exemplo disto é o
projeto de lei do Estatuto das Sociedades Indígenas, que há mais de
10 anos permanece sem aprovação no Congresso Nacional. A principal
justificativa por parte dos dirigentes políticos é a falta de consenso
entre os índios sobre as várias questões e os diferentes aspectos do
projeto de lei.
É em nome dessa visão propositadamente distorcida da diversidade
indígena que a FUNAI não reconhece as organizações indígenas como
interlocutoras ou agentes políticos das comunidades indígenas, argumentando
que os povos indígenas, na sua totalidade, não aceitariam
ser representados por alguma organização indígena. Na verdade, essa
representação pan-indígena não interessa a muitos setores políticos e
econômicos do país e, por isso, acabam dividindo os povos e as comunidades
indígenas para assim subjugá-los e dominá-los.