Extraído Série Vias dos Saberes no 1.
Movimento indígena, segundo uma definição
mais comum entre as
lideranças indígenas, é o conjunto de
estratégias e ações que as comunidades
e as organizações indígenas desenvolvem em
defesa de seus
direitos e interesses coletivos. Movimento
indígena não é o mesmo
que organização indígena, embora esta última
seja parte importante
dele. Um indígena não precisa pertencer
formalmente a uma organização
ou aldeia indígena para estar incluído no
movimento indígena,
basta que ele comungue e participe
politicamente de ações, aspirações
e projetos definidos como agenda de interesse
comum das pessoas,
das comunidades e das organizações que
participam e sustentam a
existência do movimento indígena, neste
sentido, o movimento indígena
brasileiro, e não o seu representante ou o
seu dirigente. Existem
pessoas, lideranças, comunidades, povos e
organizações indígenas que
desenvolvem ações conjuntas e articuladas em
torno de uma agenda
de trabalho e de luta mais ou menos comum em
defesa de interesses
coletivos também comuns.
O líder indígena Daniel Mundurucu costuma
dizer que no lugar de
movimento indígena dever-se-ia dizer índios em movimento. Ele tem
certa razão, pois não existe no Brasil um
movimento indígena. Existem
muitos movimentos indígenas, uma vez que cada
aldeia, cada povo ou
cada território indígena estabelece e
desenvolve o seu movimento.
Mas as lideranças indígenas brasileiras, de
forma sábia, gostam de
afirmar que existe sim um movimento indígena,
aquele que busca articular
todas as diferentes ações e estratégias dos
povos indígenas,
visando a uma luta articulada nacional ou
regional que envolve os
direitos e os interesses comuns diante de
outros segmentos e interesses
nacionais e regionais.
Essa visão estratégica de articulação
nacional não anula nem reduz as
particularidades e a diversidade de
realidades socioculturais dos povos
e dos territórios indígenas; ao contrário,
valoriza, visibiliza e fortalece a
pluralidade étnica, na medida em que
articula, de forma descentralizada,
transparente, participativa e representativa
os diferentes povos.
No Brasil, existe de fato, desde a década de
1970, o que podemos
chamar de movimento indígena brasileiro, ou
seja, um esforço conjunto
e articulado de lideranças, povos e
organizações indígenas objetivando
uma agenda comum de luta, como é a agenda
pela terra,
pela saúde, pela educação e por outros
direitos. Foi esse movimento
indígena articulado, apoiado por seus
aliados, que conseguiu convencer
a sociedade brasileira e o Congresso Nacional
Constituinte a aprovar,
em 1988, os avançados direitos indígenas na
atual Constituição
Federal. Foi esse mesmo movimento indígena
que lutou para que os
direitos à terra fossem respeitados e
garantidos, tendo logrado importantes
avanços nos processos de demarcação e
regularização das
terras indígenas. Foi também esse movimento
que lutou – e continua
lutando – para que a política educacional
oferecida aos povos indígenas
fosse radicalmente mudada quanto aos seus
princípios filosóficos,
pedagógicos, políticos e metodológicos,
resultando na chamada educação
escolar indígena diferenciada, que permite a
cada povo indígena
definir e exercitar, no âmbito de sua escola,
os processos próprios
de ensino-aprendizagem e produção e
reprodução dos conhecimentos
tradicionais e científicos de interesse
coletivo do povo. A implantação
dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas,
ainda em construção e
aperfeiçoamento, é outra conquista relevante
da luta articulada do
movimento indígena brasileiro.
Em nível regional, na Amazônia, o Projeto
Demonstrativo dos Povos
Indígenas (PDPI), que faz parte do Ministério
do Meio Ambiente,
e o Projeto Integrado de Proteção das Terras
Indígenas na Amazônia
Legal (PPTAL), pertencente à Fundação
Nacional do Índio (FUNAI),
são alguns exemplos particulares da
existência e da capacidade de
mobilização e pressão do movimento indígena
amazônico. Assim, poderíamos
enumerar vários exemplos de conquistas do
movimento indígena.
Isto significa dizer que muitas dessas
conquistas políticas não
teriam sido possíveis sem o movimento
indígena articulado, mesmo
com suas limitações e fragilidades, uma vez
que é uma aprendizagem
muito nova para os índios por se tratar de
uma modalidade complexa
de trabalho e luta dos brancos, até então
desconhecida pelos povos
indígenas.
O modelo de organização indígena formal – um
modelo branco – foi
sendo apropriado pelos povos indígenas ao
longo do tempo, da mesma
forma que eles foram se apoderando de outros
instrumentos e novas
tecnologias dos brancos para defenderem seus
direitos, fortalecerem
seus modos próprios de vida e melhorarem suas
condições de vida, o
que é desejo de qualquer sociedade humana. Isto
não significa tornar-se
branco ou deixar de ser índio. Ao contrário,
quer dizer capacidade de
resistência, de sobrevivência e de
apropriação de conhecimentos, tecnologias
e valores de outras culturas, com o fim de
enriquecer, fortalecer
e garantir a continuidade de suas
identidades, de seus valores e de suas
tradições culturais.
A idéia de movimento indígena nacional
articulado é importante
para superar a visão antiga dos colonizadores
de que a única coisa
que os índios sabem fazer é brigar e guerrear
entre si quando, na verdade,
usaram essas rivalidades intertribais para
dominá-los, para isso,
jogando um povo contra o outro. Ainda hoje,
muitos brancos, principalmente
do governo, preferem dar mais importância à
idéia de que
não há e não pode haver movimento indígena
articulado e representativo
devido à diversidade de povos e realidades,
pois isso fortalece
os propósitos de dominação, manipulação e
cooptação dos índios em
favor de seus interesses políticos e econômicos.
Os dirigentes políticos
e os gestores de políticas públicas utilizam
muito esta idéia para
justificar suas omissões e incapacidades de
formular e de implementar
políticas públicas coerentes, com o argumento
de que os índios não se
entendem, e isso impede a execução das ações.
Um exemplo disto é o
projeto de lei do Estatuto das Sociedades
Indígenas, que há mais de
10 anos permanece sem aprovação no Congresso
Nacional. A principal
justificativa por parte dos dirigentes
políticos é a falta de consenso
entre os índios sobre as várias questões e os
diferentes aspectos do
projeto de lei.
É em nome dessa visão propositadamente
distorcida da diversidade
indígena que a FUNAI não reconhece as
organizações indígenas como
interlocutoras ou agentes políticos das comunidades
indígenas, argumentando
que os povos indígenas, na sua totalidade,
não aceitariam
ser representados por alguma organização
indígena. Na verdade, essa
representação pan-indígena não interessa a
muitos setores políticos e
econômicos do país e, por isso, acabam
dividindo os povos e as comunidades
indígenas para assim subjugá-los e dominá-los.