Identidade Indígena: o orgulho de ser
índio
Extraído:
Série Vias dos Saberes no
1
O
reconhecimento da cidadania indígena brasileira e, conseqüentemente,
a
valorização das culturas indígenas possibilitaram uma nova
consciência
étnica dos povos indígenas do Brasil. Ser índio transformou-
se
em sinônimo de orgulho indenitário. Ser índio passou de uma
generalidade
social para uma expressão sociocultural importante do
país.
Ser índio não está mais associado a um estágio de vida, mas à.
qualidade,
à riqueza e à espiritualidade de vida. Ser tratado como
sujeito
de direito na sociedade é um marco na história indígena brasileira,
propulsor
de muitas conquistas políticas, culturais, econômicas
e
sociais.
Os
povos indígenas do Brasil vivem atualmente um momento especial
de
sua história no período pós-colonização. Após 500 anos de massacre,
escravidão,
dominação e repressão cultural, hoje respiram um
ar
menos repressivo, o suficiente para que, de norte a sul do país, eles
possam
reiniciar e retomar seus projetos sociais étnicos e identitários.
Culturas
e tradições estão sendo resgatadas, revalorizadas e revividas.
Terras
tradicionais estão sendo reivindicadas, desapropriadas ou reocupadas.
pelos
verdadeiros donos originários. Línguas vêm sendo reaprendidas
e
praticadas na aldeia, na escola e nas cidades. Rituais e cerimônias
tradicionais
há muito tempo não praticados estão voltando a fazer
parte
da vida cotidiana dos povos indígenas nas aldeias ou nas grandes
cidades
brasileiras.
Isto
é um retorno ao passado ou puro saudosismo? De modo algum.
Isto
é identidade indígena e orgulho de ser índio. É ser o que se é, como
acontece
com todas as sociedades humanas em condições normais de
vida.
Passado um longo período institucionalizado de repressão (pois
ainda
é forte no Brasil a repressão cultural não-institucionalizada, não oficial,
percebida,
por exemplo, na implementação das políticas públicas
e no
reconhecimento pleno dos direitos garantidos, como o direito
à
terra, à educação e à saúde adequada), as novas gerações de jovens
indígenas
parecem carentes de uma identidade que os identifique e lhes
garanta
um espaço social e indenitário em um mundo cada vez mais
global
e, ao mesmo tempo, profundamente segmentário no que diz respeito
à
cultura, à ancestralidade, à origem étnica, a partir das quais os
direitos
econômicos, sociais, culturais contemporâneos se articulam e
se
fundamentam.
É
notório o interesse das novas gerações indígenas, mais do que
aquele
dos velhos anciãos, pela recuperação do valor e do significado da
identidade
indígena, como afirmou um índio bororo certa vez: “É desejo
de
todo índio entrar e fazer parte da modernidade e seu passaporte primordial
é a
sua tradição”. Parece ser esta a razão principal da revalorização da identidade
indígena. Entrar e fazer parte da modernidade não
significa
abdicar de sua origem nem de suas tradições e modos de vida
próprios,
mas de uma interação consciente com outras culturas que leve
à
valorização de si mesmo. Para os jovens indígenas, não é possível viver
a
modernidade sem uma referência identitária, já que permaneceria o
vazio
interior diante da vida frenética aparentemente homogeneizadora
e
globalizadora, mas na qual subjazem profundas contradições, como a
das
identidades individuais e coletivas.
As
gerações indígenas mais antigas parecem oferecer maior resistência
à
reafirmação das identidades étnicas, em grande medida ainda influenciadas
pelas
seqüelas do período colonial repressivo. E não é por
menos.
Eles foram forçados a abdicar de suas culturas, tradições, de
seus
valores e saberes porque eram considerados inferiores, satânicos e
bárbaros
(ou seja, eram considerados como sinônimo de atraso, o que
os
impedia de entrar no mundo civilizado, moderno e desenvolvido) e
para
poderem se tornar gente civilizada, moderna e desenvolvida. Eles
foram
obrigados a acreditar que a única saída possível para o futuro de
seus
filhos era esquecer suas tradições e mergulhar no mundo não-indígena
sem
olhar para trás. Mas mesmo assim, muitos velhos sábios e anciãos
indígenas
estão superando esse trauma psicológico, e embarcando
no
caminho que está sendo traçado e construído pelas gerações mais
jovens,
onde prevalece a recuperação da auto-estima, da autonomia e
da
dignidade histórica, tendo como base a reafirmação da identidade
étnica
e do orgulho de ser índio.
É
importante destacar que quando estamos falando de identidade
indígena
não estamos dizendo que exista uma identidade indígena genérica
de
fato, estamos falando de uma identidade política simbólica
que
articula, visibiliza e acentua as identidades étnicas de fato, ou seja,
as
que são específicas, como a identidade baniwa, a guarani, a terena,
a
yanomami, e assim por diante. De fato não existe um índio genérico,
como
já dissemos no início deste livro. Talvez exista no imaginário
popular,
fruto do preconceito de que índio é tudo igual, servindo para
diminuir
o valor e a riqueza da diversidade cultural dos povos nativos
e
originários da América continental. Os povos indígenas são grupos
étnicos
diversos e diferenciados, da mesma forma que os povos europeus
(alemão,
italiano, francês, holandês) são diferentes entre si. Seria
ofensa
dizer que o alemão é igual ao português, da mesma maneira que
é
ofensa dizer que o povo Yanomami é igual ao Guarani.
Os
povos indígenas, ao longo dos 500 anos de colonização, foram
obrigados,
por força da repressão física e cultural, a reprimir e a negar
suas
culturas e identidades como forma de sobrevivência diante da
sociedade
colonial que lhes negava qualquer direito e possibilidade de
vida
própria. Os índios não tinham escolha: ou eram exterminados
fisicamente
ou deveriam ser extintos por força do chamado processo
forçado
de integração e assimilação à sociedade nacional. Os índios
que
sobrevivessem às guerras provocadas e aos massacres planejados e
executados
deveriam compulsoriamente ser forçados a abdicar de seus
modos
de vida para viverem iguais aos brancos. No fundo, era obrigá-
los
a abandonarem suas terras, abrindo caminho para a expansão
das
fronteiras agrícolas do país. O objetivo, portanto, não era tanto
cultural
ou racial, mas sobretudo econômico, guiando toda a política
e as
práticas adotadas pelos colonizadores. É este o ressentimento das
gerações
indígenas mais antigas, ou mesmo das gerações mais novas
que ainda
vivem sob essa repressão, como nas regiões Nordeste e Centro-
Oeste
do Brasil.
A
dinâmica e a intensidade da relação com a identidade variam de
povo
para povo e de região para região, de acordo com o processo
histórico
de contato vivido. Na Amazônia, por exemplo, onde o contato
com
os colonizadores brancos aconteceu mais recentemente, muitos
povos
indígenas continuam conservando integralmente suas culturas e
tradições,
como a terra, a língua e os rituais das cerimônias. Para esses
povos,
a prioridade é fortalecer a identidade e promover a valorização
e a
continuidade de suas culturas, de suas tradições e de seus saberes.
Até
pouco tempo pairava na cabeça de muitos brasileiros serem esses
os
“verdadeiros índios”, porque falavam suas línguas, viviam nas selvas
nus
e pintados e praticavam danças exóticas estranhas às danças
do
mundo não-indígena. Atualmente, algumas poucas pessoas menos
informadas
e esclarecidas ainda pensam assim, fruto da imagem pejorativa e preconceituosa
de índio veiculada ao longo de séculos pela escola e pelos meios de comunicação
de massa.
O
Nordeste é uma região emblemática para que se entendam hoje os meandros do que
foi o processo colonizador enfrentado pelos povos
indígenas.
Por estar localizada ao longo do litoral brasileiro, a região
foi
alvo primeiro da ocupação colonial pelos portugueses. Essa ocupação
violenta
resultou em profundas perdas territoriais e na submissão,
por
absoluta necessidade de sobrevivência, aos poderes econômicos
coloniais,
marca dos diversos povos da região, como os Xucuru, os
Fulniô,
os Cariri-Xocó, os Tuxá, os Aticum, os Tapeba, os Potiguara,
entre
outros. As línguas nativas foram substituídas pelo português
e o
modo de vida desses povos pouco se distingue dos camponeses
não-índios.
As áreas que ocupam dificilmente possibilitam uma vida
autônoma
de produção e reprodução de suas culturas, tradições e valores
para
as quais necessitariam de um resgate e de uma reorganização
social.
No entanto, a identidade indígena entre os povos da região
é
marcada por rituais específicos, como as festas do Toré (dos Tuxá) e
o
Uricuri (dos Fulniô), nos quais é proibida a presença de não-índios,
como
marca da fronteira identitária étnica. Neste sentido, a identidade
indígena,
negada e escondida historicamente como estratégia de
sobrevivência,
é atualmente reafirmada e muitas vezes recriada por
esses
povos.
O
processo de reafirmação da identidade indígena e o sentimento
de
orgulho de ser índio estão ajudando a recuperar gradativamente a
auto-estima
indígena perdida ao longo dos anos de repressão colonizadora.
Os
dois sentimentos caros aos povos indígenas estão possibilitando
a
retomada de atitudes e de comportamentos mais positivos
entre
eles, diante de um horizonte sociocultural mais promissor e esperançoso.
As
atuais gerações indígenas nascem, crescem e vivem com
um
novo olhar para o futuro, potencialmente possível e alentador,
diferente
das gerações passadas que nasciam e viviam conscientes da
tragédia
do desaparecimento de seus povos. A reafirmação da identidade
não
é apenas um detalhe na vida dos povos indígenas, mas sim
um
momento profundo em suas histórias milenares e um monumento
de
conquista e vitória que se introduz e marca a reviravolta na história
traçada
pelos colonizadores europeus, isto é, uma revolução de fato na
própria história do
Brasil.