quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Homem Natural


"Não penseis que vim trazer paz à terra; não vim trazer paz, mas espada. Pois vim causar divisão entre o homem e seu pai; entre a filha e sua mãe e entre a nora e sua sogra. Assim, os inimigos do homem serão os da sua própria casa. Quem ama  seu pai ou sua mãe mais do que a mim, não é digno de mim; quem ama  seu filho ou sua filha  mais do que a mim, não é digno de mim; e quem não toma a sua cruz, e vem após mim, não é digno de mim. Quem acha a sua vida, perdê-la-á; quem, todavia, perde a vida por minha causa, achá-la-á. Quem vos recebe, a mim me recebe; e quem me recebe, recebe aquele que me enviou. Quem recebe um profeta, no caráter de profeta, receberá galardão de profeta; quem recebe um justo, no caráter de justo, receberá galardão de justo. E quem der a beber ainda que seja um copo de água fria, a um destes pequeninos, por ser este meu discípulo, em verdade vos digo que de modo algum perderá o seu galardão. (Mt.10:34-42)

1 - Espada

É impressionante e dramática a forma como o Senhor se nos apresenta, não fazendo qualquer cerimônia em dizer que não veio trazer paz, mas sim espada. Uma outra pessoa qualquer, um pregador que se preze, tentaria, ao menos, ser um pouco mais amável, afável, sem assustar sua platéia, fazendo uso até de certo requinte com as palavras para não se passar por grosseiro. Nós estamos muito preocupados em não desagradar homens, em sermos corteses, em não espantarmos quem quer que seja, pois, mais tarde, poderá estar junto conosco em nossa assembléia. E esta tem sido uma das grandes causas de nossos problemas na igreja: Este cuidado excessivo em polidez com palavras. Estamos preocupados em não perdermos nossa platéia, e, por isso, tornamos extremamente difícil às pessoas que nos ouvem, assimilarem o que vem a ser discípulo de Jesus.

Jesus nunca se preocupou com tal polidez de palavras, pois buscava um propósito bem mais elevado do que ser agradável

"Pois busco eu agora o favor dos homens, ou o favor de Deus? ou procuro agradar aos homens? se estivesse ainda agradando aos homens, não seria servo de Cristo" Gl.1:10)

Jesus estava interessado em encontrar discípulos (e não adeptos). Queria separar quem era e quem não era. Não hesitava em dizer, até mesmo aos discípulos:

"A vista disso, muitos dos seus discípulos o abandonaram e já não andavam com ele. Então perguntou Jesus aos doze: Porventura quereis também vós outros retirar-vos?..." (Jo.6:66,67)

Em outros episódios se referia aos escribas com duríssimas palavras, como "raça de víboras", "sepulcros caiados"... Com isto Ele estava fazendo divisão: queria junto de si apenas os discípulos; trazia a espada:

"Porque a palavra de Deus é viva e eficaz, e mais cortante do que qualquer espada de dois gumes, e penetra até o ponto de dividir alma e espírito, juntas e medulas, e apta para discernir os pensamentos e propósitos do coração" (Hb. 4:12)

                Sim, esta é a espada que o Senhor traz para dividir: a Palavra de Deus.

2 - Divisão

                Dividir o que? Trazer divisão de famílias ou parentes? Afastar os entes queridos? Seria este o intuito de o Senhor, cujo propósito está diretamente ligado à família (Gn.12:3), trazer a espada da divisão? Absolutamente, não! O Senhor tem algo bem mais profundo, estável e em harmonia com seu propósito. Na verdade, todo este enlace familiar a que se refere aponta para algo tremendamente prejudicial ao nosso crescimento em seu propósito: a afeição natural. O que o Senhor tenciona ao trazer a espada é, simplesmente fazer separação entre nossa afeição natural e o Discernimento Espiritual advindo da submissão ao seu propósito.

                Nosso afeto natural é tremendamente inimigo ao estabelecimento do propósito do Senhor entre nós. Quando valorizamos o relacionamento familiar, a amizade (ainda que com cristãos) acima do relacionamento espiritual, perdemos a visão, colocamos um véu sobre nossas  vistas, e não podemos enxergar o que Deus tem preparado como eterno propósito, e toda sua conseqüência:

"mas, como está escrito, nem olhos viram, nem ouvidos ouviram, nem jamais penetrou em coração humano o que Deus tem preparado para aqueles que o amam. Mas Deus no-lo revelou pelo Espírito; porque o Espírito a todas as cousas perscruta, até mesmo as profundezas de Deus. Porque, qual dos homens sabe as cousas do homem, senão o seu próprio espírito que nele está? Assim, também as cousas de Deus ninguém as conhece, senão o Espírito de Deus. Ora, nós não temos recebido o espírito do mundo, e sim, o Espírito que vem de Deus, para que conheçamos o que por Deus nos foi dado gratuitamente. Disto também falamos, não em palavras ensinadas pela sabedoria humana, mas ensinadas pelo Espírito, conferindo cousas espirituais com espirituais. Ora, o homem natural não aceita as cousas do Espírito de Deus, porque lhe são loucura; e não pode entendê-las porque elas se discernem espiritualmente. Porém o homem espiritual julga todas as cousas, mas ele mesmo não é julgado por ninguém. Pois, quem conheceu a mente do Senhor para que o possa instruir? Nós, porém, temos a mente de Cristo" (1Co.2:9-16)

É impossível a nós conhecermos o propósito de Deus, discernirmos o corpo (1Co.11:29), estando sedimentados em nossa mente e sentimentos naturais. Por mais que ele se encha da razão e do conhecimento humano para tentar discerni-los, não conseguirá, porque o propósito de Deus se discerne espiritualmente. Só o homem espiritual tem condições de julgar entre coisas espirituais e coisas espirituais, pois pode discerni-las porque tem a mente de Cristo; como Davi, que foi um homem segundo o coração de Deus, pois brotou em seu coração o zelo pela casa de Deus, entrando, assim, em plena harmonia com o propósito eterno de Deus.

                Os discípulos de Cristo, em sua época, parece que ainda aguardavam coisas temporais, e sua esperança estava baseada em buscas terrenas, naturais... Constantemente os vemos inquirir do Senhor se seria este o tempo em que Ele restauraria a Israel o reino, ou se Ele permitiria a algum deles sentar-se ao seu lado no reino restabelecido! Suas mentes ainda eram  naturais. Por isto, não podiam entender os negócios do Pai. Não é à toa que, após a ressurreição, estes apóstolos tiveram grande dificuldade em reconhecer o Senhor, ainda que este chegasse a conversar com eles, caminhar com eles, comer com eles e, a portas fechadas, aparecer entre eles (Lc.24:13-43).

                Verdadeiramente, o sentimento natural cega, pois a carne e o sangue não podem herdar o reino de Deus, pois o que é nascido de carne é carne, mas o que é nascido do Espírito, é espírito. O primeiro Adão foi feito alma vivente, mas o último Adão, aquele que se refaz no conhecimento de Deus, é espírito vivificante, pois dá a vida (1Co.15:44-50).

"Assim, nós, daqui por diante, a ninguém conhecemos segundo a carne; e, se antes conhecemos a Cristo segundo a carne, já agora não o conhecemos deste modo." (2Co.5:16)

                Deve ter sido difícil para homens como Pedro, João, Tiago, que estiveram com Cristo durante três anos e meio, andando pelas cidades com ele, reclinando-se sobre seu peito, dormindo com ele, rindo e chorando juntos, ouvirem tal verdade, que eles não poderiam considerar Cristo como um ombro amigo, o mais recente companheiro que lhes surgiu, e que, se queriam compreender o propósito divino, não poderiam considerar Cristo desta forma.

                O relacionamento cristão não é "amizade espiritual" (e muito menos natural!), e nem pode se basear nela. Quando o Senhor chamou os doze para estarem com ele, não estava interessado em formar novos e íntimos amigos,  ainda que, no futuro, o tenham se tornado, mas isto não era sua premissa e propósito básicos: até mesmo a amizade com o Senhor  era condicionada à obediência (Jo.15:14,15). Ele queria formar discípulos, e, para isto, teve de contrastá-los com  seu "EU", sua vontade, sua disposição e disponibilidade em obedecer e o seguir. É por isto que dizia: "Vem, segue-me!"  Não era sugestivo, mas imperativo. Era uma ordem direta a cada um. Não havia nenhuma tentativa de, inicialmente, conquistar a confiança e amizade, para, depois, colocar-lhes as "propostas" de Deus. O relacionamento já começava com a ordem: "vem e segue-me... e vos farei pescadores de homens!"  Não é à toa que aqueles rudes (e até iletrados) homens tenham revolucionado o mundo, até os dias de hoje. Discípulos foram gerados. A vida cristã não é amizade cristã, e se este tipo de relacionamento é mais importante que o que Deus nos tem proposto, nos será impossível enxergar (discernir) o propósito eterno, e, com isto, não deixaremos de dar voltas no deserto em torno da montanha, pois sem visão o povo se corrompe (Pv.29:18). Não estamos falando de Tg.4:4, mas sim de se considerar o relacionamento cristão como amizade, ou a amizade cristã como sendo mais importante que o discipulado, ou à submissão à autoridade delegada. O relacionamento primário é a obediência e submissão à autoridade delegada. Sem isto não há crescimento. Antes tínhamos amizade, mas agora, temos comunhão, submissão, serviço...

                É comum vermos um relacionamento entre discípulos tornar-se amizade, e, quando acordam, o que prevalece entre eles não passa de uma boa amizade. Vão um na casa do outro, conversam sobre mil assuntos, cuidam dos afazeres um do outro, mas as premissas básicas da vida cristã são esquecidas e confundidas com tal amizade. Tal atitude é um prejuízo imenso, não só ao crescimento de ambos, com ao estabelecimento do reino de Deus e seu propósito entre nós. Em se tratando de pessoas de fora do corpo, aí é que o prejuízo é maior, pois haverá a tendência de considerarmos tal amizade (ainda que sejam com pessoas cristãs) mais importante que o relacionamento no corpo, o discipulado. Basta se considerar o tempo em que alguém passa com seu discipulador e comparar com o tempo que despende com seu "amigo"; o tempo que investe no discipulado, funcionando no corpo, visitando irmãos, servindo outros, participando das reuniões comuns do corpo, das orações,  partindo o pão em comum, e o tempo despendido com tais "amigos"...

"E perseveravam na doutrina dos apóstolos e na comunhão, no partir do pão e nas orações. Em cada alma havia temor; e muitos prodígios e sinais eram feitos por intermédio dos apóstolos. Todos os que creram estavam juntos, e tinham tudo em comum. Vendiam as suas propriedades e bens, distribuindo o produto ente todos, à medida em que alguém tinha necessidade. Diariamente perseveravam unânimes no templo, partiam pão de casa em casa, e tomavam as suas refeições com alegria e singeleza de coração, louvando a Deus, e contando com a simpatia de todo o povo. Enquanto isso, acrescentava-lhes o Senhor, dia a dia, os que iam sendo salvos". (At.2:42-47)

                Não é à toa que tivessem um resultado tão assustador aos nossos dias de verem três ou cinco mil almas se entregando ao Senhor num dia (At.2:41; 4:4)... É porque, pelo fato de viverem a vida do corpo, o povo lhes tributava grande admiração. Este é o testemunho eficaz, a luz que brilha em meio às trevas (Mt.5:14-16), a candeia de quem aguarda, com diligência, a volta de seu Senhor (Lc.12:35-48); verdadeiramente, a unidade do corpo manifesta Cristo, e, só assim, o mundo conhece que Cristo foi enviado (Jo.l7:21-23).

3 - Nosso Maior Inimigo

"Assim, os inimigos do homem serão os da sua própria casa" (v.36)

Esta casa somos nós mesmos e nosso inimigo é nossa afeição natural.

Quando o Senhor inquiriu os discípulos acerca de quem Ele era para eles, Pedro tomou a frente de todos e afirmou ser ele o Cristo, o Filho do Deus vivo. Diante desta afirmação o Senhor confirmou a Pedro que não fora a carne ou sangue que o revelara isto... não provinha tal revelação de um assentimento mental, dedução ou arrazoamento, mas o Próprio Pai o estava revelando (Mt.16:13-17).

"Desde este tempo, começou Jesus Cristo a mostrar a seus discípulos que lhe era necessário seguir para Jerusalém e sofrer muitas cousas dos anciãos, dos principais sacerdotes e dos escribas, ser morto, e ressuscitado ao terceiro dia"

 (Mt.16:21)

Pedro, condoendo-se e tomado de compaixão e afeto natural, começou a reprovar o Senhor acerca de suas afirmativas: "Tem compaixão de ti, Senhor; isso de modo algum te acontecerá."(Mt.16:22)

Jesus, voltando-se disse a Pedro: "Arreda! Satanás; tu és para mim pedra de tropeço, porque não cogitas das cousas de Deus, e, sim, das dos homens".

Que palavra dura a Pedro. Ao mesmo tempo que recebia uma revelação diretamente de Deus, era repreendido pelo Senhor, por ter sido incitado por Satanás a condoer-se do Senhor. É exatamente isto o que acontece. Quando somos guiados pela nossa afeição natural, a compaixão humana, ficamos cegos com relação ao propósito do Senhor,  e até servimos de tropeço para o próprio Senhor. Vamos exatamente contra o propósito de Deus. Podemos até receber revelação do Senhor, mas não temos discernimento dela (Is.28:9-14) e esta fica sem utilidade para nós. Verdadeiramente a carne e o sangue não podem herdar o reino de Deus, pois as coisas de Deus não se discernem naturalmente, mas espiritualmente. Então, qual seria a solução contra a afeição natural?

4 - A Cruz (v. 38)

                Será que minha família natural não seria mais importante que o compromisso que tenho com os irmãos em Cristo? Não seria exagero considerar a igreja mais importante que o relacionamento com pais e familiares? Para o homem natural, que não discerne as cousas de Deus, obviamente que a resposta seria não; Para ele, seus familiares são mais importantes. Até mesmo se escandaliza diante destas afirmativas, e tropeça nestas verdades (Pv.4:19; Ez.14:3,4,7):

"Se o teu olho direito te faz tropeçar, arranca-o e lança-o de ti; pois te é melhor que se perca um dos teus membros do que seja todo o teu corpo lançado no inferno. E, se a tua mão direita te faz tropeçar, corta-a e lança-a de ti; pois te é melhor que se perca um dos teus membros do que vá todo o teu corpo para o inferno." (Mt.5:29,30)

Portanto, irmãos, procurai mais diligentemente fazer firme a vossa vocação e eleição; porque, fazendo isto, nunca jamais tropeçareis. (2Pd.1:10)

Nosso sentimento natural milita contra o estabelecimento do reino de Deus entre nós, e só a cruz pode vencer nesta luta. Somente o novo homem, crucificado, que se refaz para o conhecimento de Deus pode entender as coisas de Deus. É por isso que Paulo afirmava:

"E eu, irmãos, quando fui ter convosco, anunciando-vos o testemunho de Deus, não fui com sublimidade de palavras ou de sabedoria. Porque nada me propus saber entre vós, senão a Jesus Cristo, e este crucificado. E eu estive convosco em fraqueza, e em temor, e em grande tremor. A minha linguagem e a minha pregação não consistiram em palavras persuasivas de sabedoria, mas em demonstração do Espírito de poder; para que a vossa fé não se apoiasse na sabedoria dos homens, mas no poder de Deus." (1Co.2:1-5)

Só o Cristo crucificado pode nos libertar do homem natural, pois "quem não toma a sua cruz, e vem após mim, não é digno de mim", diz o Senhor; porque quem quiser salvar a sua vida, perdê-la-á, mas quem perder a vida por causa do Senhor, salvá-la-á para a vida eterna (v.38,39). "Se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer, fica só, mas se morrer produz muito fruto" (Jo.12:24). Quando morremos ficamos libertos de nossa natureza, do homem natural. Não existe vantagem nenhuma em nos apegarmos tão firmemente aos nossos princípios pessoais, amizades, pensamentos, idéias, razão, emoções, sentimentos e afeição naturais.

                Se havia alguém que poderia se gloriar em sua origem natural, este alguém era Paulo: circuncidado ao oitavo dia, hebreu de hebreus, da tribo de Benjamim, fariseu, e, segundo a lei, irrepreensível...

"Mas o que para mim era lucro, isto considerei perda por causa de Cristo. Sim, deveras considero tudo como perda, por causa da sublimidade do conhecimento do conhecimento de Cristo Jesus meu Senhor: por amor do qual, perdi todas as cousas e as considero como refugo, para ganhar a Cristo, e ser achado nele, não tendo a justiça própria, que procede de lei, senão a que é mediante a fé em Cristo, a justiça que procede de Deus, baseada na fé; para o conhecer e o poder da sua ressurreição e a comunhão dos seus sofrimentos, conformando-me com ele na sua morte." (Fp.3:7-10)

Só a cruz pode produzir isto em nós; só o Cristo,  e este crucificado, quebrando toda a linhagem natural (1Pd.1:18), introduzindo-nos na espiritual para cumprirmos o propósito de Deus.

5 - Resultado: Ter Parte em Comum (v.40-42)

                Quem desta forma recebe qualquer um dos discípulos, toma parte deste corpo, do propósito de Deus. Como o Senhor disse: "Se eu não te lavar, não tens parte comigo..." e "Vós já estais limpos pela palavra que vos tenho enviado", a mesma palavra que é espada e divide (Jo.13:8; 15:3). Assim como quem recebe um profeta, em caráter de profeta, recebe galardão de profeta, ou a um justo, um galardão de justo, quem assim recebe a um discípulo, recebe o Senhor, toma parte em seu corpo, tem parte nele. Não há como experimentarmos isto em outro lugar; podemos procurar na família, nos amigos, na literatura, ou qualquer outro tipo de relacionamento, mas somente no corpo, submissos ao propósito de Deus, "reordenados" para desempenharmos o serviço com diligência, considerando este como o relacionamento principal em nossas vidas é que poderemos discernir o corpo de Cristo e compreender seu propósito.